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Autonomia da vontade nos contratos: uma breve reflexão

08 de fevereiro de 2023 | Por

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Não há dúvida de que os contratos são de fundamental importância para a vida em sociedade, possuindo, ao contrário do que se pensa, uma valia muito maior do que apenas eventual manifestação da “vontade” a ser provada em caso de litígio, pois são meios de regular e propiciar circulação de bens, serviços e riqueza, ou seja, possuem relevância econômica e social para a sociedade.

Portanto, mesmo por vezes emblemáticos, os contratos regulam a liberdade privada das personalidades jurídicas, com extrema magnitude para a circulação de riquezas, possibilitando adquirir, modificar, conservar ou extinguir obrigações.[1]

Tanto é assim que a Constituição Federal e o Código Civil consagram o direito de as pessoas exercerem a autonomia da vontade, permitindo a contratação com liberdade, tendo como limite o respeito à função social do contrato e às demais disposições de ordem pública.

Posto isto, quando ocorre a judicialização de uma relação contratual, seja por conta de eventual descumprimento, seja para revisão ou até mesmo resilição da avença, ressalvadas as questões de ordem pública e função social do contrato, o Juízo deve primar pelo respeito à vontade das partes constantes no instrumento, ou seja, respeitar a autonomia privada dos contratantes, observando a boa-fé por eles externada e a intenção manifestada antes, durante e depois da contratação. Ou seja, é imperioso considerar o momento das negociações, a execução e o término da execução contratual para, então, se o caso, proferir a decisão.

Como nos ensinam Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior:

“O contrato está, portanto, ligado à ideia de vontades livremente manifestadas que fomentam aqueles efeitos jurídicos determinados e queridos pelas partes, conforme sua causa negocial e nos limites da ordem pública.

A construção jurídica do contrato – longamente trabalhada na história do direito privado – é consequência direta, inicialmente, do princípio da autonomia da vontade, que inspira regularidade do nascimento do contrato a partir do mesmo momento das declarações de vontade emitidas pelos contratantes com consciência e liberdade, declarações essas que obedecem, depois, a princípios fundamentais da técnica jurídica, entre eles o princípio da liberdade de contratar e que, depois, abrem espaço para solidificar nesses fenômenos os influxos do princípio da autonomia privada, cujo maior feito é o de agregar a essas manifestações livre de vontade um caráter tal que lhe confere força de lei privada.”[2]

Portanto, a autonomia da vontade nas relações contratuais, atendidas as normas de direito público, deve ser respeitada com menor interferência do Estado Juiz. Caso contrário, como a prática ensina, causará desequilíbrio em uma relação alicerçada na premissa de equilíbrio entre as partes.

Vale considerar que, sobrevindo desequilíbrio, os impactos econômicos serão inevitáveis e, mesmo individualmente considerados pequenos, em casos reiterados, por consequência, causarão prejuízos de inúmeras matizes a toda a sociedade, como alta de preços e interrupção no fornecimento de produtos para ficar apenas nestes singelos exemplos.

Pondere-se que a adoção pelo Código Civil de 2002 das denominadas Cláusulas Gerais, com repercussão principal a da função social do contrato[3], não dá, muito menos permite que o Estado-Juiz intervenha demasiadamente nas relações contratuais, pois tais normas revestem-se de caráter orientador e para serem aplicadas é necessária a devida análise de cada caso concreto.

Hoje, pouco mais de duas décadas de sua promulgação, pode se dizer tranquilamente que o Código Civil de 2002 trouxe uma certa liberdade para o julgador, contudo, dita liberdade não é absoluta[4], o que fomenta grandes discussões no âmbito do Poder Judiciário.

Utilizando mencionada liberdade, somada às Cláusulas Gerais, em especial a função social e a boa-fé objetiva, há situações em que a intervenção do Estado é de suma importância, como nos casos em que, por conjunturas alheias, a vontade da parte sofre grande interferência, ocasionando um desequilíbrio demasiado na relação contratual. Foi justamente o que se viu em dias recentes, quando a pandemia desorientou a bússola mundial das relações negociais.

Assunto jurídico tormentoso, tais ocorrências, como situações possíveis, mas imprevistas, podem ser entendidas como motivo, desde que devidamente comprovado, do desequilíbrio contratual, suficiente para permitir e fazer com que o Estado-Juiz intervenha em uma relação contratual.

Assim, nas relações contratuais judicializadas, imprescindível, como já colocado, ser realizada a devida análise das circunstâncias negociais, observando e ponderando, quando possível, todas as fases do contrato (pré-contratual, execução e pós-contratual) para, então, se aferir a real intenção das partes, o que servirá de norte para uma intervenção.

E o propósito de todo esse cuidado é claro: diminuir as chances de ser criada uma insegurança jurídica, pois é fundamental em uma sociedade que busca o amadurecimento normativo a diminuta intervenção do Estado nas relações contratuais privadas.

Pensa-se que o prestígio da autonomia da vontade, bem como das etapas negociais aqui consideradas, certamente acarretará um desestímulo para a intervenção estatal e, se e quando necessária a intervenção, por certo se dará na menor medida possível.

Logo, imprescindível, ante a importância econômica do contrato, que a autonomia da vontade seja respeitada no seu maior grau, tal como originalmente concebida e traduzida no contrato, ressalvando os casos em que a intervenção do Estado-Juiz é imprescindível para a manutenção do contrato e da ordem econômica envolvida na relação contratual, aspectos esses com potencial de repercutir em toda sociedade.

 


[1] Nery, Rosa Maria de Andrade, Nery Junior, Nelson, Instituições de direito civil: contratos. v III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 35, 36.

[2] Nery, Rosa Maria de Andrade, Nery Junior, Nelson, Instituições de direito civil: contratos. v III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 44

[3] Nery, Rosa Maria de Andrade, Nery Junior, Nelson, Instituições de direito civil: contratos. v III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 37.

[4] Rebouças, Rodrigo Fernandes, Autonomia privada e a análise econômica do contrato. São Paulo: Editora Almedina, 2017, p 97.

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